terça-feira, 31 de janeiro de 2017

9. (Fernando Morgado)

Enquanto bebia o chá que estava a ferver, sem ter mexido bem o açúcar depositado no fundo da chávena, iam surgindo recordações. Agarrava-se a cada exercício de recuperação, a cada lágrima furtiva, a cada sorriso consciente, a cada jarra de flores, como ao único trampolim capaz de mandar pelos ares outras tantas imagens de corpos sem um corpo de verdade, todos os despojos privados de vida cuja morte tinha visto certificar ou certificado ele mesmo. Nunca tinha estado submetido a uma pressão semelhante, nunca se tinha sentido tão fora de si, nunca recordava ter tido tanto medo como então. Precisava de gritar, insultar as nuvens, arranhar-se na cara, mas estava quieto.


Mexeu o açúcar, “recomecemos”. Vivia agora a doce espera da sorte. Tentava compreender esta sede que nasce a cada momento de dúvida, que se antecipa à própria dúvida do mesmo modo que há respostas prontas antes de qualquer pergunta. Podia ser feliz neste seu estado aquático.

Sem comentários:

Enviar um comentário