segunda-feira, 13 de março de 2017

15. Agatha Arêas (12/03/2017)
Segundos de eternidade do outro lado da linha preparam o coração de Manuel para o contato que mais desejou em tantos anos de espera: “Pai?”. Manuel com a voz embargada, retruca: “Ana?”.
“Sou eu, meu Pai, a Ana. Não a mesma Ana que deixou Portugal. Não a mesma Ana que de repente se viu sozinha na América. Não a mesma rapariga que tem o rosto estampado na foto que trouxe o Pai até aqui. Sou em parte a sua Ana de sempre. E ainda em maior parte a Ana que me descobri ser.

(Manuel em silêncio absoluto)

Poucos meses após chegar à São Francisco, aquele que entendia como meu marido revelou-se um estranho. Afastou-se de tal forma do ideal que dele fazia, que a ruptura daquele relacionamento com alguém que eu não conhecia foi o único desfecho para um capítulo que decidi não permitir ocupar mais páginas da minha história.
Um marido que eu não conhecia. Uma Ana que eu não reconhecia.

Decidi então ir em busca de mim mesma. 
Tinha que ver o mundo lá fora. Precisava sentir o mundo cá dentro.
Mas essa busca precisava ser silenciosa.

Por muitas vezes quis falar com você, Pai. Ligar aos manos. Aos avós.
Mas encontrei forças que nem imaginava poder ter. E segui meu caminho numa espécie de peregrinação. Visitei muitos países. Fiz amizades em alguns portos. Ri e chorei. Quase desisti. Mas continuei.

Certo dia cheguei a Kyoto. Numa lojinha onde tentava pedir informações – não em japonês, mas através de gestos – um senhor japonês olhou para mim e tentou me dizer algo, como se me conhecesse. Eu não conseguia entender o que queria dizer. Em japonês, chama um colega, explica-lhe algo e o colega, que falava um pouco de inglês, pergunta-me “você é a rapariga da foto?”, respondo com outra pergunta “Que foto?”. O senhor retorna com uma foto de uma rapariga idêntica a mim... não fosse o penteado e as vestimentas tão antigas... era eu. Mas como podia? Contou-me então que um senhor português havia ali estado há poucos dias e que teria encontrado aquela foto, sobre a qual tudo queria saber. Que teria perguntado se sabia o nome da rapariga na foto. E eu – com uma sensação impossível de descrever – perguntei-lhe: “O nome? Que nome o senhor português deu à rapariga da foto?” e bastou o colega traduzir-lhe a minha pergunta que, de imediato, sem qualquer hesitação, o japonês respondeu “Ana”.

Ali tive certeza de que era você, Pai.
Mais uma vez quis fazer contato. Quantas saudades. E quanta vontade de adiantar um encontro que o destino estava a nos preparar.
Mas algo dizia-me que ainda precisávamos encontrar mais de nós mesmos. Você no seu caminho. Eu no meu.

E continuei a minha caminhada. Cheguei até aqui. Paris.
Andei por toda a cidade. Dias esperançosos num cenário tão bonito. Mas não falo francês. E precisava conversar. E conversar no meu idioma. De novo pensei em ligar à casa. Estava quase pondo termo ao pacto que fiz comigo mesma de seguir minha caminhada e só retomar contato com a minha saudosa família quando soubesse quem sou eu e o que realmente me move e comove. Foi aí que lembrei-me do Pai por diversas vezes comentar sobre um amigo livreiro que trabalhava numa livraria pequenina no Boulevard Saint-Michel. Não recordava o nome da livraria. Nem o do seu amigo. Mas lembrava do Pai a descrever o pequeno espaço, suas 4 paredes, cheias de estantes e livros variados e um tanto quanto mal organizados nas prateleiras. Fui em busca da tal livraria. Entrei em algumas. Sempre perguntava se ali trabalhava um português. Até que cheguei a Boulinier. Não foi preciso perguntar pelo o amigo do Pai. O Luis – sim, seu amigo Luis – estava a sair para o almoço quando me viu no balcão à espera de poder falar com o atendente. Ele dirige-se a mim e pergunta “Ana?”. Respondo “Sim”. Ele afirma “A filha do Manuel. A rapariga da foto. A Dominique Lapin.”

Luís convidou-me para almoçar. Levou um livro com ele. Contou-me toda a história que sabia sobre a busca do Pai pelo meu paradeiro. Sobre a fixação do Pai pela foto. Pela minha foto. Ou da Dominique Lapin. Mostrou-me o livro do qual o Pai vem seguindo pistas. Quando terminou o almoço, achou que eu estaria preparada para saber. E me disse: “Seu pai está em Paris. Não sei o endereço do hotel. Mas tenho o telefone dele. Aqui está.”

Meu peito encheu-se de felicidade. Mas a euforia momentânea logo deu lugar a um grande receio: “será que o Pai vai compreender a minha escolha? Vai apoiar a minha decisão de ter partido em busca de mim mesma?” Transmiti este sentimento ao Luís. E ele me disse algo que dissipou qualquer medo que eu pudesse ter de procurar o Pai. Pegou novamente o livro, apontou para a dedicatória e me pediu para lê-la em voz alta: “Que ela seja do mundo como foi minha”. “Este é o desejo que o seu pai guarda no peito. Ele ficará feliz em saber que você descobriu o mundo. Que você descobriu o seu mundo.”

(outros segundos de eternidade, num silêncio de entendimento e aconchego)


“Ana, minha filha. Quanto orgulho de você.”

segunda-feira, 6 de março de 2017

14. (Gisela Campos)

Foram necessários quatro anos, seis dias, 12 horas e exatos 47 minutos para que Manuel chegasse àquele que seria o instante decisivo, o momento da verdade, como se durante todos estes anos fossem apenas um ensaio  para este justo e preciso minuto, como se só agora pudesse-se dizer que passava a existir de verdade, como se a própria palavra verdade ganhasse enfim um novo sentido: poderoso, mármore lavado brilhando ao sol, e não era apenas um se, era mesmo uma nova e pujante verdade se descortinando diante de suas retinas; mas voltando ao que agora nos interessa, foram necessários quatro anos, seis dias, 12 horas e exatos 47 minutos para que Manuel estendesse as mãos: era tamanho o seu passado, tanto o desatino, (que intensa fora sua busca), nomes e lugares flutuavam pelo quarto como a poeira quando refletida em fresta de luz: San Francisco, Dominique Lapin, Kyoto, Rue de Saint-Anne, destinos que o levaram longe mas acabaram por trazê-lo para ali, aqui, para este solitário agora quando Manuel é apenas um homem assombrado pela busca e pela misteriosa frase "que sejas do mundo como foste minha", o telefone toca trim, trim, trim, o terceiro toque anuncia o momento pelo qual Manuel esperara por quatro anos, seis dias, 12 horas e 47 minutos. Respira fundo e, ao tirar o telefone do gancho, todo aquele estado aquático a que se acostumara nos últimos anos se adensa, o quarto vira uma pedra de gelo, todas as palavras que deslizavam no ar desabam pesadas, e do que sobrou do destemido Manuel que um dia ousou desbravar o Japão, só se consegue ouvir um sopro tímido de voz, praticamente um sussurro: "sim?"