15. Agatha Arêas (12/03/2017)
Segundos de eternidade do outro lado da
linha preparam o coração de Manuel para o contato que mais desejou em tantos
anos de espera: “Pai?”. Manuel com a voz embargada, retruca: “Ana?”.
“Sou eu, meu Pai, a Ana. Não a mesma
Ana que deixou Portugal. Não a mesma Ana que de repente se viu sozinha na América.
Não a mesma rapariga que tem o rosto estampado na foto que trouxe o Pai até
aqui. Sou em parte a sua Ana de sempre. E ainda em maior parte a Ana que me
descobri ser.
(Manuel em silêncio absoluto)
Poucos meses após chegar à São
Francisco, aquele que entendia como meu marido revelou-se um estranho.
Afastou-se de tal forma do ideal que dele fazia, que a ruptura daquele
relacionamento com alguém que eu não conhecia foi o único desfecho para um
capítulo que decidi não permitir ocupar mais páginas da minha história.
Um marido que eu não conhecia. Uma Ana
que eu não reconhecia.
Decidi então ir em busca de mim mesma.
Tinha que ver o mundo lá fora.
Precisava sentir o mundo cá dentro.
Mas essa busca precisava ser
silenciosa.
Por muitas vezes quis falar com você,
Pai. Ligar aos manos. Aos avós.
Mas encontrei forças que nem imaginava
poder ter. E segui meu caminho numa espécie de peregrinação. Visitei muitos
países. Fiz amizades em alguns portos. Ri e chorei. Quase desisti. Mas
continuei.
Certo dia cheguei a Kyoto. Numa lojinha
onde tentava pedir informações – não em japonês, mas através de gestos – um
senhor japonês olhou para mim e tentou me dizer algo, como se me conhecesse. Eu
não conseguia entender o que queria dizer. Em japonês, chama um colega, explica-lhe
algo e o colega, que falava um pouco de inglês, pergunta-me “você é a rapariga
da foto?”, respondo com outra pergunta “Que foto?”. O senhor retorna com uma
foto de uma rapariga idêntica a mim... não fosse o penteado e as vestimentas
tão antigas... era eu. Mas como podia? Contou-me então que um senhor português
havia ali estado há poucos dias e que teria encontrado aquela foto, sobre a
qual tudo queria saber. Que teria perguntado se sabia o nome da rapariga na
foto. E eu – com uma sensação impossível de descrever – perguntei-lhe: “O nome?
Que nome o senhor português deu à rapariga da foto?” e bastou o colega
traduzir-lhe a minha pergunta que, de imediato, sem qualquer hesitação, o
japonês respondeu “Ana”.
Ali tive certeza de que era você, Pai.
Mais uma vez quis fazer contato.
Quantas saudades. E quanta vontade de adiantar um encontro que o destino estava
a nos preparar.
Mas algo dizia-me que ainda
precisávamos encontrar mais de nós mesmos. Você no seu caminho. Eu no meu.
E continuei a minha caminhada. Cheguei
até aqui. Paris.
Andei por toda a cidade. Dias
esperançosos num cenário tão bonito. Mas não falo francês. E precisava
conversar. E conversar no meu idioma. De novo pensei em ligar à casa. Estava
quase pondo termo ao pacto que fiz comigo mesma de seguir minha caminhada e só
retomar contato com a minha saudosa família quando soubesse quem sou eu e o que
realmente me move e comove. Foi aí que lembrei-me do Pai por diversas vezes
comentar sobre um amigo livreiro que trabalhava numa livraria pequenina no
Boulevard Saint-Michel. Não recordava o nome da livraria. Nem o do seu amigo.
Mas lembrava do Pai a descrever o pequeno espaço, suas 4 paredes, cheias de
estantes e livros variados e um tanto quanto mal organizados nas prateleiras.
Fui em busca da tal livraria. Entrei em algumas. Sempre perguntava se ali
trabalhava um português. Até que cheguei a Boulinier. Não foi preciso perguntar
pelo o amigo do Pai. O Luis – sim, seu amigo Luis – estava a sair para o almoço
quando me viu no balcão à espera de poder falar com o atendente. Ele dirige-se
a mim e pergunta “Ana?”. Respondo “Sim”. Ele afirma “A filha do Manuel. A
rapariga da foto. A Dominique Lapin.”
Luís convidou-me para almoçar. Levou um
livro com ele. Contou-me toda a história que sabia sobre a busca do Pai pelo
meu paradeiro. Sobre a fixação do Pai pela foto. Pela minha foto. Ou da Dominique Lapin. Mostrou-me o livro do qual o Pai
vem seguindo pistas. Quando terminou o almoço, achou que eu estaria preparada
para saber. E me disse: “Seu pai está em Paris. Não sei o endereço do hotel.
Mas tenho o telefone dele. Aqui está.”
Meu peito encheu-se de felicidade. Mas
a euforia momentânea logo deu lugar a um grande receio: “será que o Pai vai
compreender a minha escolha? Vai apoiar a minha decisão de ter partido em busca
de mim mesma?” Transmiti este sentimento ao Luís. E ele me disse algo que
dissipou qualquer medo que eu pudesse ter de procurar o Pai. Pegou novamente o
livro, apontou para a dedicatória e me pediu para lê-la em voz alta: “Que
ela seja do mundo como foi minha”.
“Este é o desejo que o seu pai guarda no peito. Ele ficará feliz em saber que
você descobriu o mundo. Que você descobriu o seu mundo.”
(outros
segundos de eternidade, num silêncio de entendimento e aconchego)
“Ana, minha
filha. Quanto orgulho de você.”