9. (Fernando Morgado)
Enquanto bebia o chá que estava a
ferver, sem ter mexido bem o açúcar depositado no fundo da chávena, iam
surgindo recordações. Agarrava-se a cada exercício de recuperação, a cada
lágrima furtiva, a cada sorriso consciente, a cada jarra de flores, como ao único
trampolim capaz de mandar pelos ares outras tantas imagens de corpos sem um
corpo de verdade, todos os despojos privados de vida cuja morte tinha visto
certificar ou certificado ele mesmo. Nunca tinha estado submetido a uma pressão
semelhante, nunca se tinha sentido tão fora de si, nunca recordava ter tido
tanto medo como então. Precisava de gritar, insultar as nuvens, arranhar-se na
cara, mas estava quieto.
Mexeu o açúcar, “recomecemos”. Vivia
agora a doce espera da sorte. Tentava compreender esta sede que nasce a cada
momento de dúvida, que se antecipa à própria dúvida do mesmo modo que há
respostas prontas antes de qualquer pergunta. Podia ser feliz neste seu estado
aquático.