terça-feira, 31 de janeiro de 2017

9. (Fernando Morgado)

Enquanto bebia o chá que estava a ferver, sem ter mexido bem o açúcar depositado no fundo da chávena, iam surgindo recordações. Agarrava-se a cada exercício de recuperação, a cada lágrima furtiva, a cada sorriso consciente, a cada jarra de flores, como ao único trampolim capaz de mandar pelos ares outras tantas imagens de corpos sem um corpo de verdade, todos os despojos privados de vida cuja morte tinha visto certificar ou certificado ele mesmo. Nunca tinha estado submetido a uma pressão semelhante, nunca se tinha sentido tão fora de si, nunca recordava ter tido tanto medo como então. Precisava de gritar, insultar as nuvens, arranhar-se na cara, mas estava quieto.


Mexeu o açúcar, “recomecemos”. Vivia agora a doce espera da sorte. Tentava compreender esta sede que nasce a cada momento de dúvida, que se antecipa à própria dúvida do mesmo modo que há respostas prontas antes de qualquer pergunta. Podia ser feliz neste seu estado aquático.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

8. (Bárbara Tomaz) 

Abraçando fortemente o livro contra o peito, Manuel caminhou pelas margens do Sena, deixando-se levar pela imensidão do pensamento. Memórias da sua filha. Inúmeras perguntas para as quais não tinha, mas queria, resposta.

Acordou meio que inebriado do vinho que bebera na noite anterior. Era o 7º dia do 7º mês. Manuel recordava algo que Dominique Lapin havia escrito sobre Tanabata Matsuri enquanto revia, no chão do seu quarto, dezenas de pequenas folhas de papel colorido com caracteres japoneses. De que se trataria? Teria delirado? Não tinha memória de nada.

“Ungaii... Ungaii... Ungaii...” – pensava para consigo. Auspicioso ou não, tinha que continuar. Sabia que a comunidade japonesa se começara a estabelecer na Rua de Sainte-Anne e seria aí a sua próxima paragem. Pegou no livro e saiu porta fora.


Assim que se sentou ao balcão um sorriso tímido estendeu-lhe uma chávena de chá. Manuel meteu a mão no bolso da camisa e retirou a fotografia da sua filha Ana, ou seria antes Hana? 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

7.   (Daniela Ambrósio)

Luís lembrou-se que tinha um dicionário de japonês –inglês valia a pena tentar! Luís pegou no dicionário e começou a pesquisar pois Manuel estava visivelmente nervoso: as suas mãos estavam transpiradas, frias e tremiam e os olhos estavam aguados focados naquele livro. Não sabia se iria chegar a alguma conclusão mas talvez ajudasse...

“Ungaii” significa “is lucky”. Is lucky? Tem sorte? Aquilo não fazia sentindo nenhum! Por uma fração de segundos Manuel pensou que tudo aquilo era um disparate e a foto, que não lhe saía da cabeça, de repente não lhe parecia assim tão nítida.

Não! Ía levar aquilo até ao fim, já que tinha chegado até aqui. Não tinha viajado até Paris para nada! Decidiu comprar o livro de Dominique Lapin, talvez nele houvesse uma pista. E iria percorrer todos os locais que frequentava. Poderia não chegar a lado nenhum, mas pelo menos a jornada seria divertida!


Saiu da Boulinier e seguiu a Boulevard Saint-Michel em direção ao Sena. Chegando lá decidiria para onde seguir!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

6. (Rita Roquette)

Manuel acaba de chegar a Paris. Já não visitava aquela cidade há mais de 10 anos e tudo lhe parecia diferente. Os cheiros, as pessoas, as ruas.

Mas havia algo que não mudava, anos após anos, a sua Boulinier. Os livros iam mudando de cara e os temas actualizando-se, mas a essência das antigas palavras continuava entre aquelas 4 paredes e as suas largas estantes. Pergunta por Luis, que como sempre, está no seu pequeno escritório a etiquetar e catalogar os milhares de livros que o rodeiam.

Luis fica tão surpreso de o ver como pela razão que levara Manuel até si. Uma foto. Um autor. O nome não lhe era estranho, mas entre tantos livros não era possível recordar-se de tudo.

E a pesquisa começa, entre pilhas de autores internacionais e nacionais, Luis encontra um livro de Lapin. De seu titulo: “Ungaii”.. o que quererá dizer? E todos os restantes caracteres orientais que preenchem a frente e o verso do livro? Não sabem, apenas percebem que de uma história de amor se trata ao lerem a dedicatória:

Que ela seja do mundo como foi minha”.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

5. (Pedro Sousa)

A foto tinha um papel de destaque cada vez maior no centro da sala vazia. Era como se fosse a única peça da sala, como se ocupasse cada vez mais espaço, impossível de ignorar. A Imagem olhava-o nos olhos, apelava à descoberta da sua história.

A inquietação crescia de dentro para fora e impunha a sua presença, incómoda, angustiante, mesmo que aparentemente impossível, algo tinha que fazer, dar corpo às imagens que rodavam como um remoinho na memória.

Manuel sentou-se à mesa com uma missão, uma ideia que lhe dava forças, uma força que não sentia há muito tempo, um tempo que já não tinha e escasseava por entre as frinchas da janela da sala, pelos céus da cidade numa tarde de sol como tantas outras.

Uma fotografia, um nome, uma cidade, uma língua.Começaria por Paris, no Boulevard Saint-Michel, a Boulinier era uma visita regular nos tempos em que o trabalho obrigava a deslocações regulares. O seu amigo Luís, um português, livreiro, conhecedor dos meandros editoriais e visita frequente dos meios decadentes em que tantas vezes as letras se movem, poderia ser uma ajuda para perceber esta inquietante coincidência.

Conheceria ele Dominique Lapin ? Existiria ou seria apenas um nome? Partiria desde já!