segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

4. (Raquel Pais)

Nisso, ele não pensou mais. E isso, que estava dentro do aquilo, voltou, como volta tudo o que nos arrebata por um segundo. Bastava fechar os olhos para escutar o crespo grito de um livro que se desfaz, o cheiro das cobertas húmidas da casa dos avós acariciava-lhe as gengivas, e começava aquilo. Um estrangulamento na garganta, homicídio de dentro, cócegas como passos de mil demónios, e ele raspava o ar, e ele raspava a voz, e raspava o tempo e a memória para entender o porquê de tamanho infortúnio. Saltava para fora da cama, mantas escuras escavavam o colchão duro, no escuro expectante, atento ao menor baile que uma folha por escrever, encenava na árvore. Voltara um homem doente, pensava. Receoso de incomodar os vizinhos, saltitava levemente até à cozinha, olhava a cidade e roía algum legume, cortado em palitos milimetricamente calculados no mármore branco da casa vazia. 

Sem comentários:

Enviar um comentário